Tem
tradição entre nós o interesse pela poesia vinda de Espanha,
patenteado desde há muito tanto no incansável trabalho de divulgação
levado a
cabo por José Bento (n. 1932) como nas traduções de Joaquim Manuel
Magalhães
(n. 1945). Pequenas editoras como a Averno, a extinta Ovni, a Língua
Morta, a
Douda Correria, a Medula e a do lado esquerdo, para citar umas poucas
entre
outras que por certo estarei a esquecer, deram e vão dando continuidade,
conforme os casos e na medida das suas possibilidades, a esse esforço
de publicação de poetas herdeiros da língua de Cervantes. Dois livros
recentes
são exemplo desse mesmo esforço, assim como de uma pluralidade que
mantém viva
a poesia produzida por nuestros hermanos.
Comecemos por Carne de Leviatã (Douda Correria, Junho de
2016), de Chus Pato (n. 1955), poeta galega estreada em 1991 com um livro
intitulado Urania. Uma nota final informa-nos de que a obra traduzida por João
Paulo Esteves da Silva encerra a pentalogia Decrúa, iniciada com a publicação
de m-Tala (2000) e continuada com os livros Charenton (2004), Hordas de
escritura (2008) e Secesión (2009). É igualmente da autora um apontamento explicativo
do título Carne de Leviatã, o qual foi respigado em Giorgio Agamben numa passagem onde se alude à tradição judaica. Leviatã é um dos três animais
da origem que servirá de banquete aos justos nos dias do Messias. A poesia de
Chus Pato tinge-se de inúmeras alusões congéneres, provenientes tanto da
mitologia greco-romana como da tradição judaico-cristã.
Transgredindo as
convenções do lirismo focado no sujeito, assume uma tendência
reflexiva que aproxima amiúde o discurso poético do pensamento filosófico.
Neste contexto, o problema da linguagem, da relação entre as palavras e os
corpos nomeados, é uma das temáticas mais em evidência, ainda que reflectindo simbolicamente,
por meio de uma linguagem que privilegia o sentido metafórico das palavras,
certa dimensão ética de que o poema não abdica. Sirva de exemplo esta
Clareza
de Juízo
Entendo que a vida é o que vivemos: esta a tua a
minha a nossa
vida
entendo que um poema é pobreza comparado com a vida
entendo que é
pausa
que por um instante separa a vida de si
que pesa e faz balanço
aguça os sentidos
Entendo que é acesso ao intelecto
um vértice corpóreo
impróprio
Assim o entendo
que o poema indica a desconexão entre melodia e
sentido
Entendo que um poema só se escreve com versos finais
Desfunda o
idioma
desfunda a vida
Esta
ideia de poema enquanto acesso ao
intelecto é o que mais sobressai na poesia de Chus Pato, jogando aqui
com alegorias,
acolá com símbolos, por vezes aforística, outras vezes elíptica, no
encalço de
um idioma capaz de traduzir a intensidade dos ritmos que pautam o
andamento do
mundo. À imaterialidade da linguagem, a poesia responde com a
ambiguidade do
verso: «escrevo a voz como um país estrangeiro». É este o seu poder
alquímico, o seu assombro, a sua estimulante e desafiante proposta.
Bem diferente é a poética de Jesús Jiménez
Domínguez (n. 1970), natural de Saragoça. Ensinar o eco a falar (do lado
esquerdo, Abril de 2017) é uma antologia com poemas provenientes de três livros
do autor: Fundido en Negro (2007), Frecuencias (2012) e Contra las cosas
redondas (2016). A confiar na informação disponibilizada online, pois,
infelizmente, nenhuma nota explicativa acompanha esta edição, ficou de fora o poemário
de estreia Diario de la anemia / Fermentaciones (2000).
Inscrita nas tendências
dominantes do seu tempo, poder-se-ia dizer desta poesia o mesmo que se diz de
tanta outra arreigada aos pormenores do quotidiano. Nos primeiros poemas
sobressai o tom elegíaco proveniente de uma paisagem urbana com bares e
cemitérios em pano de fundo. A solidão, a melancolia, o tédio, são constantes
que atravessam poemas devedores de uma narratividade que o poema de Billy
Collins incluído no segundo conjunto bem sintetiza em cinco singelos versos da
segunda estrofe: «Sirvo-me dos detalhes mais simples / — um cão adormecido no chão, /
um pássaro que escapa por uma janela — / para me revoltar contra a tradição
literária / mais grandiloquente» (p. 27). Não enjeitamos, porém, a
possibilidade de no futuro ser esta a tradição contra a qual alguém escreverá,
por antever no prosaísmo discursivo, eivado aqui e acolá de referências
multiculturais e de uma ligeira ironia, a pose repetida do flâneur baudelairiano:
«A cidade por onde caminhamos é um sapato demasiado apertado» (p. 13).
O
existencialismo previsível que matiza grande parte destes poemas resulta em
cenas quotidianas e rotineiras, descontinuadas apenas pela capacidade que o
poeta demonstra em, a espaços, arriscar olhar para o mundo sem por ele ser absorvido.
É o caso do poema que deu título ao último dos livros contemplados nesta breve antologia traduzida por Maria Sousa:
CONTRA AS COISAS REDONDAS
Amamos as coisas redondas e pensamos
que vão ser eternas e amáveis e perfeitas:
a toranja debaixo do rotundo sol de agosto,
a pulseira que orbita em volta do pulso,
a moeda com duas caras e nenhuma cruz,
a bola de praia em cujo interior ainda se respira
um ar paciente de mil novecentos e oitenta e dois.
Há dias redondos em que tudo se encaixa
e a vida parece andar sobre rodas:
alguém, de lixa na mão, encarregou-se
de subtrair ao mundo todas as esquinas,
todas as arestas, todas as bordas.
Mas basta que atravesses um declive
ou que tudo se volte, de repente, para cima,
para verificar que são as coisas redondas
as primeiras a sair e a começar a correr:
a toranja, a pulseira, a moeda e a bola.
Eu recuso-me redondamente a aceitar tais desplantes.
Às formas esféricas eu oponho as coisas informes.
Escolho as imperfeitas, as imprecisas, as irregulares.
Aquelas cheias de defeitos, amolgadelas ou dobras.
Bonitas e originais, sem se sujeitarem a nenhum centro,
só elas permanecem e nos acompanham sempre.