O mais recente número da revista Criatura revela-se o seu maior conseguimento até à data. Reúne um núcleo fortemente significativo de poetas, que formam um friso amplo e importante da poesia actual. Contou com a colaboração de nomes como António Barahona – «Agora já posso dizer/ o som em carne viva» (p.11) –, numa poesia que revela a arte de um «procurador/ extintor de sono» (p.14) –; Jaime Rocha – «Uma velha sentada/ num banco de madeira sorri como/ se bebesse veneno por uma palha.» (p.67) –, um contributo marcado por um impressivo fulgor imagético, assinalável força metafórica – «A cidade acorda como sempre/ debaixo de um suor agitado./ As formigas invadem os restos/ de fruta e as baratas iniciam o/ seu ciclo instável.» (p.71) –; ou Rui Caeiro – «E se por acaso quiseres beber, tens/ não direi toda a terra pois tudo/ aquilo que nela há é escasso» (p.127).
Merecem lugar de destaque os poemas de David Teles Pereira – «As nossas leis não chegam para acalmar todos os vícios/ e o pior de todos é chorar-te» (p.19) – e Diogo Vaz Pinto – «Quer dizer que abro cortes na ponta/ dos dedos, mergulho-os como isco/ no escuro, e aguardo.» (p.48) –, que se afirmam hoje como autores de alguma da poesia mais relevante e que mais interessa da actualidade. Uma poesia que, na melhor tradição, deixou todos os tronos, qualquer verborreia, e está mais próxima do sangue – «Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça.» (Golgona Anghel) (p.63) –, acolhe os mais ínfimos filamentos da vida – «Toda esta poesia que nunca cabe num poema.» (Roger Wolfe) (p.l17), que não se enamora do «pus das imagens» (p.43) (DVP). Uma poesia que se dessacralizou, mas em que são, com desvelo, mensurados, pesados, escandidos, os seus materiais, palavra e som – «A poesia é o menos. Serve/ se der com o ritmo» (p.45) (DVP). No entanto, está perdida, neles, para sempre, qualquer possibilidade de valia descontextualizada, no ar – «Os poemas?/ Alguns funcionam,/ outros não./ Se o que queres/ é uma garantia, então compra um televisor.» (p.115) (RW) Trabalho do poeta, «constatar o óbvio» (RW) (124). Fazê-lo, porém, com um investimento linguístico, literário, e de si, que o isente da banalidade – «Há corpos que buscam as luzes dos bares/ nas cidades de passagem como as traças nocturnas/ buscam a bugia do último coração aceso.» (Jesús Jiménez Domínguez) (p.85) Entende-se, nestes versos, a possibilidade de, na nossa passagem por aqui, dizer o que o próprio viver cala – «Viver é outra coisa:/ deixas a gaveta fechada/ e arrancas tudo/ com unhas e dentes,/ o sabor amargo da casca,/ de tão doce,/ não o esqueces.» (Luís Filipe Parrado) (p.89) A poesia, enfim, como possibilidade de criar um espaço onde ele escasseia, um fluxo de dizeres onde se erguem, calados, todos os muros – «A imaginação é a melhor bebida, a água/ do mescal e o mescal da água, urgente, in-/ adiável» (Miguel Martins) (p.107).
Uma das virtualidades desta publicação estará, porventura, na riqueza que lhe advém da disparidade de estilos, da variedade de registos – «não um poeta/quando mais são mais/ dezenas insolentemente/ passando fogo» (p.153). Num cruzamento de planos em que estão em causa vectores aparentemente desavindos, obtêm abrigo seguro as palavras – «as formas de conhecer-te são só duas/ ou três; esta é a que demora mais tempo./ a chuva parou e continuamos distraídos neste/ amor de cabotagem» (p.149) (Tiago Araújo). Como é, ainda, possível encontrar num metaforismo bem calibrado um verso seguro, de tom claramente peculiar – «A carne da tua visão será o labirinto das paredes do teu quarto/ Abertas sobre o tempo/ Em exaustão/ Estranharás as camadas de cal a cobrirem o corpo lúcido do pátio/ O teu mundo será uma cesta de frutos na maturidade das raízes.» (p.139) (Rui Pedro Gonçalves) É possível encontrar, num uso mais escasso, mais visceral, da metáfora e da acção do tropo, um terreno interessante – «E assim, cada coisa é uma hemorragia, cada coisa está fora/ de cada coisa, é todas as outras menos ela mesma.» (p.83) (Jesús Jiménez Domínguez) Numa abordagem destemida da narrativa que é, ao mesmo tempo, depara-se com um modo de revolver as estruturas típicas da história, através da elipse, das suspensões, das inflexões do sentido – «Estava quase a nevar. O radiador, a roupa, as canecas/ e as colheres com cheiro a mel e leite azedo,/ tudo deixado a um canto, à espera de arrumação,/ tal e qual os dias.» (p.21) (DTP) Uma via em que o relato é viabilizado e sabotado pela poesia, que a torna, a um tempo, mais sintético e mais imponderável – «O verão regressa lembrado apenas/ das repetições mais inúteis. O ar/ brinca com a luz, levanta-a ainda/ nos ombros. Em bando e à velocidade/ do grito que queimou esses caminhos/ quase a pique, parecíamos mais.» (p.33) (DVP)
Aqui se revela uma poesia desconfiada do lirismo – «só poemas,/ traições assim, bem delicadas.» (DVP) (p.40) – e do cânone – «Não quero que me façam nenhuma análise do poema.» (GA) (p.63) –; uma poesia que não alimenta brumas, sublimes, outras falhas – «Por aqui se compreende,/ obliterada poética,/ que a poesia não se escreve todos os dias/ se há despesas a liquidar» (LFP) (p.90). Sem literatismo, com um desprendimento que será tudo menos desapego que ignore – «Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação/ do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,/ a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco/ e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril/ dos teus olhos negros que não compreenderão/ jamais como, alguma vez, pudeste escrever/ a palavra vida a seguir à palavra sentido.» (L.F.P.) (p.93) – há uma atitude poética livre de servilismos, da sarna da idolatria – «murchas prateleiras/ de uma biblioteca rançosa» (RW) (p.114). Em inspirada nota final se lê que «a poesia antes de tudo/ é um feroz instinto» (p.151).
Merecem lugar de destaque os poemas de David Teles Pereira – «As nossas leis não chegam para acalmar todos os vícios/ e o pior de todos é chorar-te» (p.19) – e Diogo Vaz Pinto – «Quer dizer que abro cortes na ponta/ dos dedos, mergulho-os como isco/ no escuro, e aguardo.» (p.48) –, que se afirmam hoje como autores de alguma da poesia mais relevante e que mais interessa da actualidade. Uma poesia que, na melhor tradição, deixou todos os tronos, qualquer verborreia, e está mais próxima do sangue – «Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça.» (Golgona Anghel) (p.63) –, acolhe os mais ínfimos filamentos da vida – «Toda esta poesia que nunca cabe num poema.» (Roger Wolfe) (p.l17), que não se enamora do «pus das imagens» (p.43) (DVP). Uma poesia que se dessacralizou, mas em que são, com desvelo, mensurados, pesados, escandidos, os seus materiais, palavra e som – «A poesia é o menos. Serve/ se der com o ritmo» (p.45) (DVP). No entanto, está perdida, neles, para sempre, qualquer possibilidade de valia descontextualizada, no ar – «Os poemas?/ Alguns funcionam,/ outros não./ Se o que queres/ é uma garantia, então compra um televisor.» (p.115) (RW) Trabalho do poeta, «constatar o óbvio» (RW) (124). Fazê-lo, porém, com um investimento linguístico, literário, e de si, que o isente da banalidade – «Há corpos que buscam as luzes dos bares/ nas cidades de passagem como as traças nocturnas/ buscam a bugia do último coração aceso.» (Jesús Jiménez Domínguez) (p.85) Entende-se, nestes versos, a possibilidade de, na nossa passagem por aqui, dizer o que o próprio viver cala – «Viver é outra coisa:/ deixas a gaveta fechada/ e arrancas tudo/ com unhas e dentes,/ o sabor amargo da casca,/ de tão doce,/ não o esqueces.» (Luís Filipe Parrado) (p.89) A poesia, enfim, como possibilidade de criar um espaço onde ele escasseia, um fluxo de dizeres onde se erguem, calados, todos os muros – «A imaginação é a melhor bebida, a água/ do mescal e o mescal da água, urgente, in-/ adiável» (Miguel Martins) (p.107).
Uma das virtualidades desta publicação estará, porventura, na riqueza que lhe advém da disparidade de estilos, da variedade de registos – «não um poeta/quando mais são mais/ dezenas insolentemente/ passando fogo» (p.153). Num cruzamento de planos em que estão em causa vectores aparentemente desavindos, obtêm abrigo seguro as palavras – «as formas de conhecer-te são só duas/ ou três; esta é a que demora mais tempo./ a chuva parou e continuamos distraídos neste/ amor de cabotagem» (p.149) (Tiago Araújo). Como é, ainda, possível encontrar num metaforismo bem calibrado um verso seguro, de tom claramente peculiar – «A carne da tua visão será o labirinto das paredes do teu quarto/ Abertas sobre o tempo/ Em exaustão/ Estranharás as camadas de cal a cobrirem o corpo lúcido do pátio/ O teu mundo será uma cesta de frutos na maturidade das raízes.» (p.139) (Rui Pedro Gonçalves) É possível encontrar, num uso mais escasso, mais visceral, da metáfora e da acção do tropo, um terreno interessante – «E assim, cada coisa é uma hemorragia, cada coisa está fora/ de cada coisa, é todas as outras menos ela mesma.» (p.83) (Jesús Jiménez Domínguez) Numa abordagem destemida da narrativa que é, ao mesmo tempo, depara-se com um modo de revolver as estruturas típicas da história, através da elipse, das suspensões, das inflexões do sentido – «Estava quase a nevar. O radiador, a roupa, as canecas/ e as colheres com cheiro a mel e leite azedo,/ tudo deixado a um canto, à espera de arrumação,/ tal e qual os dias.» (p.21) (DTP) Uma via em que o relato é viabilizado e sabotado pela poesia, que a torna, a um tempo, mais sintético e mais imponderável – «O verão regressa lembrado apenas/ das repetições mais inúteis. O ar/ brinca com a luz, levanta-a ainda/ nos ombros. Em bando e à velocidade/ do grito que queimou esses caminhos/ quase a pique, parecíamos mais.» (p.33) (DVP)
Aqui se revela uma poesia desconfiada do lirismo – «só poemas,/ traições assim, bem delicadas.» (DVP) (p.40) – e do cânone – «Não quero que me façam nenhuma análise do poema.» (GA) (p.63) –; uma poesia que não alimenta brumas, sublimes, outras falhas – «Por aqui se compreende,/ obliterada poética,/ que a poesia não se escreve todos os dias/ se há despesas a liquidar» (LFP) (p.90). Sem literatismo, com um desprendimento que será tudo menos desapego que ignore – «Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação/ do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,/ a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco/ e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril/ dos teus olhos negros que não compreenderão/ jamais como, alguma vez, pudeste escrever/ a palavra vida a seguir à palavra sentido.» (L.F.P.) (p.93) – há uma atitude poética livre de servilismos, da sarna da idolatria – «murchas prateleiras/ de uma biblioteca rançosa» (RW) (p.114). Em inspirada nota final se lê que «a poesia antes de tudo/ é um feroz instinto» (p.151).
Hugo Pinto Santos
Versão aumentada da crítica publicada no suplemento do Expresso, Atual, 11.12.2010
Versão aumentada da crítica publicada no suplemento do Expresso, Atual, 11.12.2010
Mas que belo broche, e ainda lhe pagou o almoço!
ResponderEliminara inveja, a inveja... ou a dor de coto de não ser convidado a participar na revista.
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